top of page
Publicidade
728x90.png

Parteiras da Amazônia Enfrentam Multas e Ameaças por Salvar Vidas

Tradição milenar é punida enquanto mães remotas clamam por ajuda no Brasil.


A parteira Tabita dos Santos Moraes, 51, acalma Mayleane Melo, 22, durante o nascimento de seu bebê na comunidade Deus e Pai, em Tefé, Amazonas, Brasil, 26 de outubro de 2024. REUTERS/Pilar Olivares
A parteira Tabita dos Santos Moraes, 51, acalma Mayleane Melo, 22, durante o nascimento de seu bebê na comunidade Deus e Pai, em Tefé, Amazonas, Brasil, 26 de outubro de 2024. REUTERS/Pilar Olivares

Salvador, 23 de março de 2025 – Na vasta Amazônia brasileira, onde rios serpenteiam por milhares de quilômetros e estradas são um luxo raro, as parteiras tradicionais têm sido a única salvação para mulheres grávidas em comunidades isoladas.


Porém, uma investigação especial da Reuters, publicada em 19 de março, revela que essas guardiãs de uma prática milenar estão sendo multadas, processadas e ameaçadas de prisão por conselhos de enfermagem e autoridades médicas.


O caso de Maria José da Silva, uma parteira de 58 anos do rio Purus, no Amazonas, ilustra o drama: após ajudar em um parto de emergência em 2024, ela foi multada em R$ 5.000 pelo Conselho Regional de Enfermagem (Coren-AM) por “exercício ilegal da profissão,” mesmo sendo a única ajuda disponível a 200 km do hospital mais próximo.


Esse embate entre tradição e regulação expõe uma crise de saúde pública e um sistema que pune quem preenche o vazio deixado pelo Estado.


A Amazônia, com seus 7,4 milhões de km², abriga cerca de 1,6 milhão de indígenas e ribeirinhos, muitos sem acesso a médicos ou unidades de saúde. Segundo a Reuters, o Brasil tem uma das maiores taxas de mortalidade materna da América Latina – 59 mortes por 100 mil nascidos vivos em 2022, conforme o Ministério da Saúde –, e a situação é pior em áreas remotas, onde o índice pode triplicar.


Em Lábrea (AM), por exemplo, onde Maria José atua, há apenas um médico para cada 5.000 habitantes, e o hospital local, a 12 horas de barco da maioria das aldeias, frequentemente carece de equipamentos básicos. Nesse vácuo, parteiras como ela, que aprenderam o ofício com avós e tias, realizam cerca de 30% dos partos na região, salvando vidas onde o SUS não chega.


Tabita passeia de canoa pelo igarapé com sua cadela Priscila ao deixar a comunidade Deus e Pai em Tefé, Amazonas, Brasil, 28 de outubro de 2024. REUTERS/Pilar Olivares

A perseguição às parteiras começou a se intensificar em 2023, quando o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) emitiu uma resolução exigindo que apenas enfermeiros obstetras ou médicos conduzissem partos, sob pena de multas e processos por “usurpação de função.”


O Coren-AM, em um caso citado pela Reuters, aplicou uma penalidade de R$ 3.000 a outra parteira, Antônia Lopes, 62 anos, por atender uma gestante em trabalho de parto em uma comunidade ribeirinha em 2024.


O conselho alega que essas mulheres, sem formação acadêmica, colocam vidas em risco, mas as parteiras e suas comunidades discordam veementemente. “Eu faço isso há 40 anos e nunca perdi uma mãe ou um bebê. Quem vai ajudar essas mulheres se eu parar?” questionou Maria José à Reuters, ecoando o desespero de quem vive à margem do sistema de saúde.


A prática do parto tradicional é um pilar cultural na Amazônia. A BBC Brasil relatou em 2022 que parteiras indígenas, como as da etnia Tikuna, usam ervas, massagens e conhecimentos ancestrais para aliviar dores e facilitar nascimentos, muitas vezes em casas de palafita sem energia elétrica.


Em Lábrea, Maria José descreveu à Reuters como ajudou uma jovem de 19 anos cujo bebê estava em posição pélvica: com técnicas manuais, ela reposicionou a criança e garantiu um parto seguro, algo que um médico, a horas de distância, não poderia fazer.


Apesar disso, o Coren-AM a multou e ameaçou denunciá-la ao Ministério Público por “prática ilegal,” exigindo que ela pague ou enfrente prisão – uma sentença que ela, vivendo de subsistência, não tem como cumprir.


A ironia é gritante: enquanto o Brasil assinou acordos internacionais, como a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que protege práticas tradicionais, o sistema jurídico local as criminaliza.


O G1 apontou em 2023 que o SUS enfrenta uma carência de 20 mil médicos na Amazônia, e o programa Mais Médicos, embora tenha levado 1.200 profissionais à região desde 2013, não cobre as áreas mais isoladas. Em 2024, o governo federal prometeu construir 50 unidades básicas de saúde fluviais até 2026, mas até agora apenas três estão operando, segundo o Estadão. Sem infraestrutura, as parteiras preenchem o vazio, mas são punidas por isso.


Os números mostram a gravidade da situação. A Reuters estima que, em 2024, cerca de 60 parteiras no Amazonas receberam multas ou advertências, e pelo menos 12 enfrentam processos criminais.


Em um caso extremo, uma parteira de Coari foi detida por três dias em dezembro de 2024, acusada de “homicídio culposo” após um bebê nascer com complicações – que sobreviveu graças à intervenção dela, mas morreu dias depois por falta de UTI neonatal na região.


“Eu salvei a criança, mas me culparam porque não sou enfermeira,” disse ela à Reuters. A pena prevista para exercício ilegal da profissão pode chegar a dois anos de detenção, mas as multas acumuladas, como os R$ 5.000 de Maria José, são impagáveis para quem ganha menos de um salário mínimo por mês.


A comunidade local está revoltada. Em Lábrea, moradores fizeram um protesto em 15 de março de 2025, bloqueando o porto fluvial com cartazes como “Parteiras são nossas médicas” e “Estado ausente, tradição presente,” conforme o Correio.


Líderes indígenas, como Raimundo Tikuna, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), exigem que o governo reconheça oficialmente as parteiras como agentes de saúde comunitária, uma prática adotada em países como México e Canadá. “Elas não estão roubando empregos, estão fazendo o que ninguém mais faz,” disse Raimundo à BBC Brasil. Sem elas, afirmam, muitas mães morreriam em partos caseiros sem assistência.


A Reuters também destaca o impacto humano. Maria José, que cuida de um neto pequeno e de uma filha com deficiência, teme perder tudo se for presa. “Se me levarem, quem vai sustentar minha família?” perguntou ela, com lágrimas nos olhos.


Em 2024, ela ajudou 18 mulheres a dar à luz, todas sem complicações graves, mas vive com o medo constante de novas multas. Enquanto isso, o Coren-AM defende sua posição, alegando que “a regulamentação protege a população,” mas não explica como suprir a ausência de profissionais nas áreas remotas.


O contraste com outras políticas de saúde é evidente. Durante a pandemia, o Brasil mobilizou recursos para vacinar 90% da população amazônica até 2022 (G1), mas o atendimento obstétrico permanece negligenciado.


Especialistas como Ana Lúcia Pontes, da Fiocruz, ouvida pela Reuters, criticam a falta de diálogo: “Punir parteiras sem oferecer alternativas é condenar as mulheres da Amazônia à morte.” Ela sugere um modelo híbrido, com treinamento básico para parteiras e integração ao SUS, algo já testado com sucesso em Roraima em 2023 (Estado de Minas).


O futuro das parteiras da Amazônia está em jogo. Enquanto o governo promete melhorias, as multas continuam, e a tradição que salvou gerações é tratada como crime. Para Maria José e tantas outras, cada nascimento é uma vitória – mas também um risco que o Brasil, com sua saúde pública falha, insiste em punir em vez de valorizar.

Publicidade
Publicidade
img970x250-1743520499459.avif
bottom of page