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Acarajé: História, Manifestação Cultural e Religiosa Africana no Brasil

Acarajé da Bahia
Reprodução/YouTube

Em 2025, o acarajé permanece como um dos mais significativos símbolos da cultura baiana nas ruas de Salvador, transcendendo seu papel gastronômico para representar um complexo fenômeno sociocultural. O bolinho de feijão-fradinho frito em azeite de dendê, presente tanto em rituais sagrados do candomblé quanto no comércio popular, exemplifica a resistência e adaptação das tradições africanas no Brasil, constituindo um patrimônio vivo da herança afro-brasileira.


Origem Etimológica e Significado Ritual


A etimologia do acarajé revela camadas profundas de significado cultural. Na língua iorubá, "akará" (bola de fogo) e "jé" (comer) formam um termo que ultrapassa a simples descrição culinária. A narrativa mitológica associada aos orixás Xangô e Iansã estabelece uma conexão direta com o panteão africano, onde o alimento serve como ponte entre o mundo material e espiritual.


Na cosmologia do candomblé, o acarajé representa mais que uma oferenda - é um elemento de comunicação com o sagrado. A lenda dos orixás do fogo fundamenta não apenas sua preparação ritual, mas também estabelece hierarquias e protocolos específicos dentro dos terreiros, onde cada etapa de sua confecção carrega significados simbólicos precisos.


Contexto Histórico e Social


A trajetória do acarajé no Brasil está intrinsecamente ligada à história da escravidão e aos mecanismos de resistência desenvolvidos pela população africana escravizada. Introduzido por escravos de Benim entre o final do século XVIII e início do XIX, o quitute rapidamente se transformou em um instrumento de autonomia econômica e preservação cultural.


As "escravas de ganho", mulheres que vendiam diversos produtos nas ruas para suas senhoras, encontraram no comércio do acarajé uma rara oportunidade de acumulação de recursos próprios. Esta atividade permitiu não apenas a eventual compra da própria liberdade, mas também o estabelecimento de redes de solidariedade que foram fundamentais para a manutenção das práticas religiosas africanas.


O sistema de vendas estabelecido por essas mulheres criou uma complexa rede econômica e social que possibilitou o financiamento de irmandades religiosas e terreiros de candomblé, constituindo um dos pilares da resistência cultural africana no período escravocrata.


Ilustração de escravos negros na Bahia.
Ilustração de escravos negros na Bahia.

Aspectos Ritualísticos


A dimensão sagrada do acarajé estabelece protocolos rigorosos em sua preparação ritual. Nos terreiros de candomblé, apenas filhos de santo iniciados podem preparar a iguaria destinada aos orixás, seguindo uma receita que permanece inalterada há gerações. Esta versão ritual difere significativamente daquela comercializada nas ruas.


O preparo ritual envolve orações, oferendas preliminares a Exu e uma sequência específica de procedimentos que devem ser rigorosamente observados. O tamanho e formato dos bolinhos variam de acordo com o orixá a que se destinam: para Iansã, por exemplo, devem ter o tamanho de um prato de sobremesa e ser ornados com números específicos de camarões, relacionados aos seus odus (destinos) no jogo de búzios.


Baiana preparando o acarajé
Baiana preparando acarajé. Créditos: gettyimages

Patrimônio Cultural Imaterial


O ofício das baianas do acarajé, reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial pelo IPHAN, representa um complexo sistema de saberes e práticas. As baianas, identificadas por suas vestes brancas tradicionais, turbantes e colares, são mais que vendedoras - são guardiãs de um conhecimento ancestral que engloba não apenas técnicas culinárias, mas também aspectos religiosos, sociais e culturais.


A indumentária tradicional das baianas carrega simbolismos específicos: o branco representa a ligação com os orixás, os colares indicam filiação religiosa, e o turbante simboliza respeito e hierarquia. Cada elemento do tabuleiro da baiana tem seu lugar e significado próprios, seguindo uma organização que remonta às tradições africanas.


Perspectiva Transnacional


O acarajé mantém uma presença significativa na África Ocidental contemporânea, onde é conhecido por diferentes denominações: akara na Nigéria (kosai no norte) e koose em Gana. Esta persistência evidencia a força das tradições culinárias africanas e sua capacidade de adaptação a diferentes contextos sociais.


Estudos comparativos entre as versões africana e brasileira do acarajé revelam tanto permanências quanto transformações culturais. Enquanto na África o preparo mantém-se mais próximo à forma original, com acompanhamentos simples como pimenta em pó ou molho de tomate picante, no Brasil a iguaria incorporou elementos locais, refletindo o processo de sincretismo cultural característico da formação da sociedade brasileira.


Documentação Histórica


O registro mais significativo sobre os primeiros métodos de preparo do acarajé no Brasil encontra-se na obra do antropólogo Manuel Querino, "A arte culinária na Bahia" (1916). Sua descrição detalhada do processo de moagem do feijão-fradinho em pedras especialmente talhadas fornece importantes insights sobre as técnicas culinárias do período e sua evolução.


Querino documentou não apenas o processo técnico, mas também as relações sociais e econômicas que envolviam a comercialização do acarajé, fornecendo um valioso panorama da sociedade baiana do início do século XX e do papel central das vendedoras de acarajé na economia informal urbana.


Relevância Sociocultural Contemporânea


Na atualidade, o acarajé representa um complexo fenômeno sociocultural que transcende sua função gastronômica. Como elemento de resistência cultural, ele exemplifica a capacidade das tradições afro-brasileiras de se manterem vivas e relevantes, adaptando-se às mudanças sociais sem perder sua essência.


Em Salvador, cada baiana do acarajé representa um elo em uma cadeia de transmissão de conhecimentos que remonta a gerações. Seu ofício, além de manter viva uma tradição centenária, contribui para a economia local e para o turismo cultural, demonstrando como elementos tradicionais podem se integrar à dinâmica da vida urbana contemporânea.

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